A Origem da Palavra CULTURA
Alfredo Bosi
Fonte: Liter&Art BrasilUma definição da cultura hoje em dia se tornou particularmente difícil, porque a cultura pode ser estudada de vários pontos de vista e precisaríamos escolher uma perspectiva para poder defini-la.
Como professor de língua portuguesa e pessoa que sempre se dedicou ao estudo do que se chama de Humanidades, eu gostaria de remontar ao primeiro significado da palavra cultura na tradição romana. A palavra cultura é latina e sua origem é o verbo colo. Colo significava, na língua romana mais antiga, “eu cultivo”; particularmente, “eu cultivo solo”. A primeira acepção de colo estava ligada ao mundo agrário, como foi Roma antes de se transformar naquele império urbano que nós conhecemos. Os romanos começaram efetivamente pela agricultura. A palavra agricultura diz muito: “cultura do campo”.
Inicialmente, a palavra cultura, por ser um derivado de colo, significava, rigorosamente, “aquilo que deve ser cultivado”. Era um modo verbal que tinha sempre alguma relação com o futuro; tanto que a própria palavra tem essa terminação –ura, que é uma desinência de futuro, daquilo que vai acontecer, da aventura. As palavras terminadas em –uro e –ura são formas verbais que indicam projeto, indicam algo que vai acontecer. Então a cultura seria, basicamente, o campo que ia ser arado, na perspectiva de quem vai trabalhar a terra.
Esse significado material da palavra, relacionado com a sociedade agrária, durou séculos; até que os romanos conquistaram a Grécia e foram em parte helenizados. Nós sabemos a extrema importância da cultura grega, da arte e da filosofia grega para o desenvolvimento da cultura romana. E os gregos tinham já uma palavra para o desenvolvimento humano, que era paideia.
Paideia significava o conjunto de conhecimentos que se devia transmitir às crianças – paidós (criança é paidós) – daí Pedagogia, que é a maneira de levar a criança ao conhecimento. Dessa raiz é que se criou paideia, que por volta do primeiro século antes de Cristo, o momento forte da helenização de Roma, passou para o Império Romano e carecia de uma tradução em latim. Os romanos sabiam o que era paidéia, pois os seus pedagogos eram escravos gregos que iam para a Itália; alguns contratados e outros como escravos deveriam trabalhar para os seus donos e tinham a função de ensinar grego e retórica para os meninos das famílias patrícias.
Nessa altura, a Grécia também exercia a função de “emprestar” palavras; começava-se a usar palavras gregas freqüentemente entre os romanos. Só que, por outro lado, o nacionalismo romano também exigia que se traduzissem os termos gregos. E qual era o paralelo que eles podiam fazer? Os romanos não tinham nenhum termo que significasse “conjunto de conhecimentos que deveriam ser transmitidos à criança”.
Mas, conhecendo a palavra paideia e não querendo usá-la porque era uma palavra estrangeira, passaram a traduzi-la por cultura. A palavra cultura passou do significado puramente material que tinha em relação à vida agrária para um significado intelectual, moral, que significa conjunto de idéias e valores.
E é tardio isso, só a partir do primeiro século é que se encontram exemplos da palavra nessa acepção; se a gente for aos dicionários de latim compilados depois da época imperial, encontramos cultura sempre definida em primeiro lugar como o amanho do solo, o trabalho sobre o solo, ligado sempre ao verbo colo e seus derivados, por exemplo: in-cola – aquele que mora num certo lugar; inquilino – aquele que mora num lugar que não é seu; colônia – lugar para onde se deslocam trabalhadores que vão arar em outras terras. Culto vem do particípio passado de colo (colo é o verbo, que tem um particípio passado: cultus), é aquilo que já foi trabalhado. Depois, passou a ter um significado espiritual-religioso. Aliás, entre parênteses, nós não sabemos se o significado religioso foi anterior ou posterior ao significado material. Agora, cultura certamente sabemos que passou de um significado material para um significado ideal e intelectual.
Essas observações que estou fazendo, etimológicas, poderão nos servir como um fio em nosso discurso, porque ambos os significados sobreviveram nas línguas modernas. Podemos falar na cultura do arroz, na cultura da soja, na cultura do trigo, entendemos muito bem que é uma terra cultivada; falamos em cultivo (palavra também derivada de colo) e mais ainda, com freqüência, usamos a palavra cultura na acepção ideal, que é muito rica, porque traz dentro de si, na forma verbal terminada em -ura, a idéia de futuro, de projeto.
Se tivéssemos que definir a palavra a partir dessas considerações, teríamos uma riqueza de possibilidades, porque a cultura, pensada como um conjunto de idéias, valores e conhecimentos, traz dentro de si, em primeiro lugar, a dimensão do passado. Muitos conhecimentos foram herdados de outras gerações, não estamos começando do zero, muito pelo contrário, cada ano que passa acumula mais conhecimento. Cada vez mais a dimensão cumulativa, a dimensão de passado, se impõe. É extraordinário como a nossa memória tem que ficar cada vez mais enriquecida, porque o tempo passa e a memória cresce proporcionalmente.
Sem dúvida nenhuma, a primeira idéia que temos quando falamos em cultura é a de transmissão de conhecimentos e valores de uma geração para outra, de uma instituição para outra, de um país para outro; subsiste sempre a idéia de algo que já foi estabelecido em um passado – que pode ser um passado próximo ou um passado remoto. Evidentemente, nossa cultura tecnológica tem proximidade com a Revolução Industrial e com tudo o que veio depois, ao passo que a cultura humanística deve remontar aos gregos e aos romanos, há 2.000 ou 3.000 anos atrás. Não importa: seja um passado recente, séculos XIX e XX, seja um passado remoto (antes de Cristo, ou épocas arcaicas), sempre a palavra cultura carrega dentro de si a idéia de transmissão de idéias e valores.
Mas, voltando à etimologia, cada vez mais nos preocupamos com a outra dimensão, que é a dimensão do projeto. Não basta que nós herdemos do passado todas essas riquezas, é preciso que continuemos aprofundando certos veios; se a cultura está sempre “in progress”, ela está sempre em fase de desvios, ela não é algo estabelecido para sempre. Só as culturas em decadência é que fixam, congelam, tal como a cultura bizantina, que, dizem, durante mil anos repetiu as fórmulas do Império Romano do Oriente; ou a cultura chinesa, antes de a China entrar em contato com o mundo ocidental, também codificou formas, comportamentos; a japonesa também.
No mundo contemporâneo, ao contrário, cada vez menos nos atemos à fixidez das fórmulas e cada vez mais (como a cultura é um complexo de conhecimentos científicos, técnicos etc., e não só históricos) nos preocupamos em criar projetos de cultura; e cada vez mais, além desta criação, os nossos ideais democráticos exigem uma socialização do conhecimento. Não só cavar na matéria em si da cultura, mas também estendê-la na linha da comunicação, na linha da socialização; e fazer com que este bem seja repartido, distribuído, da maneira mais justa e mais ampla possível, o que é próprio da sociedade democrática.
Alfredo Bosi nasceu em São Paulo em 23 de agosto de 1936. Professor universitário, crítico e historiador da literatura brasileira. Ocupa a cadeira 12 da Academia Brasileira de Letras.
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